Festival END 5ª Edição
Light on Light
Carminda
Soares
Nota inicial: Antes do início da performance, é pedido aos espetadores para deixarem os seus pertences e casacos à entrada. São entregues auscultadores a cada elemento do público a partir dos quais será ouvido o texto.
A performance consiste num percurso pela cidade, feito em grupo e em modo de corrida, partindo de dentro do Teatro até chegar à rua. Pede-se então ao público para que corra com a performer.
A velocidade da corrida é estabelecida pelo grupo. Um corpo coletivo que corre. Abranda-se quando alguém não consegue acompanhar o ritmo, aumenta-se a velocidade quando possível.
A performer não toma nenhuma decisão sem ser simplesmente a de direção, isto é, orientando os restantes pelo percurso a seguir.
Importante destacar que o itinerário não se resume simplesmente a espaços exteriores, o percurso avança, igualmente, pelo interior de edifícios tanto públicos como privados de modo a permitir que este corpo coletivo experiencie várias ramificações da cidade.
Aqui pode ter acesso ao audiotexto de “Light on Light” para que possa ouvi-lo em corrida, caminhada, ou, se assim entender, sentado no seu sofá:
Subpalco do Teatro.
Todos os elementos do público possuem auscultadores
a partir dos quais é ouvido o texto.
Construir um bunker dentro da minha cabeça. Bem lá no fundo do cérebro um bunker. Podem tocar à campainha, gritar, chamar por mim, estou dentro dum bunker. Dentro da minha cabeça ninguém me encontra. Dentro da minha cabeça ninguém me encontra. Ouviram? Um grande silêncio, um balde de água densa e cerrada. Podem fazer uma revolução inteira lá fora, nem vou dar por isso. É a isto que chamo construir um bunker dentro da
cabeça. Há tarefas mais difíceis do que esta. Escavar uma terra que já conheço nunca me incomodou. Já sei o jeito certo de colocar a pá para a superfície ceder, conheço bem a cor do húmus e a temperatura da rocha-mãe. Mas pensa bem antes de fazeres um bunker dentro da tua cabeça. Há cérebros mais argilosos do que outros.
O percurso começa.
A partida acontece ainda dentro do Teatro, avançando sobre as diferentes partes do edifico normalmente não destinadas ao público.
Invade-se os corredores, atravessa-se o palco e bastidores até desembocar na entrada dos artistas, chegando finalmente à rua.
O percurso é feito inicialmente em passo lento aumentando progressivamente a velocidade.
Poderia até haver tutoriais no wikihow:
Passo número 1 – Verificar os procedimentos legais: há terra onde é proibido remexer;
Passo número 2 - Ter em consideração o solo;
Passo número 3 – Escavar. Criar um buraco dentro do cérebro;
Passo número 4 - Construir seis ou sete imagens com que se possa ocupar durante um ano;
Passo número 5 - Encher o buraco com argamassa;
Passo número 6 - Nunca partilhar com absolutamente ninguém o seu conteúdo e localização.
Abrir espaço dentro do meu cérebro para resistir.
Estranho esta noção de segurança que se encontra debaixo de tudo. Terra, tijoleira, casa. Como se nos pudéssemos agasalhar dentro do chão. Quanto mais perto dos bichos melhor, quanto mais abaixo das coisas mais estáveis. A segurança vem sempre em oposição à altura, como um bunker que se constrói dentro do nosso corpo.
A performance sai finalmente do teatro e avança pelo centro da cidade.
É o primeiro contacto do grupo com a rua.
Alguns minutos de silêncio para que a relação com a cidade seja feita.
Espera-se que o ruído e o movimento lembrem por contraste o silêncio vivido dentro do teatro.
A partir do momento que o grupo chega à rua o passo lento anterior aumenta de ritmo até gradualmente chegar à corrida.
O difícil sempre foi começar. Como se todos os inícios tivessem uma aflição de quem procura: nunca se sabe o quê, nunca se sabe aonde. Como se corpo, cérebro e espaço tivessem permanentemente à procura de uma
sincronização comum, uma pequena extensão onde, casualmente, todas as coisas se alinham. Mas tudo não passa de mecânica. A mecânica ensina. Depois do primeiro movimento o atrito é menor, depois disso expande-se o volume sobre o que existe na Terra e fora dela. Depois de começar é só ganhar velocidade.
Após os primeiros cinco minutos já nem sinto o meu próprio corpo. Há uma ligeireza qualquer. Nada me pesa, não sinto dor, não tenho medos. Nem procuro.
Não procuro absolutamente nada.
O alcatrão inteiro a vir contra mim.
Cavalos a galope a vir contra mim.
Carros com sensores de estacionamento a vir contra mim.
Uma epidemia incontrolável a vir contra mim.
Cometas gigantes e discos voadores a vir contra mim.
Uma solidão inteira a vir contra mim.
Laranjas e romãs e outra fruta podre.
Céus escuros e glaciares.
Animais e mais animais que todos os dias mato.
A minha mãe a chorar.
Todas as pessoas desta cidade.
A segurança social a vir contra mim.
Um cão que não quer andar a vir contra mim.
Esgotamento nervoso a vir contra mim.
O branco das ciclovias a vir contra mim.
Palavras que não tive coragem de dizer a vir contra mim.
Bandeiras de seis ou mais cores.
Calos nas pontas dos dedos.
Revólveres que falam sozinhos.
Água, vidro e pão.
Arroz frio no fundo da panela.
O bolor na parede que não sai.
E tudo a atravessar-me.
De repente tudo a vir contra mim.
Uma descarga imensa. Como se as coisas aparecessem horizontais, em linha reta, diretas à testa.
Imagens e mais imagens que me enchem os olhos.
Tudo a despejar para cima de mim, sem ser preciso procurar nada. Lembram-se quando tínhamos de ir procurar? Aqui não, tudo a vir contra mim.
O difícil sempre foi começar. Para já sou só um corpo em frente a tentar ser eficiente, a cumprir. A perna esquerda diz para a direita que não a consegue acompanhar.
O peito diz-me que quer parar e eu quase acredito. Sinto na garganta cada passo contra o chão. Tento ouvir…
Mas depois dos primeiros cinco minutos é mais fácil.
O corpo esquece-se. Esquecer sempre foi a melhor solução para tudo.
O corpo esquece-se.
Esquece.
Esquece-te.
Breve silêncio.
Uma pequena pausa da voz para lembrar a anunciação anterior e esquecer tudo o resto.
O ritmo da corrida mantém-se.
Esquecer de andar, de comer, de respirar. O corpo vai-se esquecer. Como a minha avó que morreu sem se lembrar de nada. Ela e o Alzheimer a dividir a cama por dez anos. Que se esquecia dela mesma, daquilo que tinha e que sempre lhe pertenceu. Como se tudo aquilo que tens, todas as tuas memórias fossem deslizando continuamente da testa até ao chão. Como se esquecer fosse simplesmente isso, deixar as memórias descerem devagarinho pelo corpo até as descalçarmos.
A minha avó era descalça. Um corpo livre, reformado, que não precisa exercer função alguma. Máquinas que façam o meu trabalho. A minha avó era uma natureza morta, uma maquinaria viva.
E não somos todos? Máquinas em trabalho que não param de produzir a alta velocidade. A velocidade é o alimento da cidade. Rápido. Uma cidade que esburaca e constrói a correr, que é como quem diz à pressa. Tudo isto é uma competição para ver quem ganha. Um a ir mais rápido que o outro. Um a ser mais eficiente do que o outro, a inventar melhor.
Este que subiu mais alto. Aquela cova que é maior que a minha. E vamos por aí fora: pôr a máquina a trabalhar para mais tarde poder usufruir do lucro.
Quando ao certo? Não sei. Mais tarde. Mas põe a máquina a trabalhar! Anda, não estás a ver que ele esta a ir mais rápido que tu? Anda! Vamos ver quem chega primeiro. Isso. Rápido.
Incita-se quase a uma aceleração,
aumentando a velocidade da corrida.
Idealmente passa-se por uma zona mais ampla onde
se possa correr livremente como um parque ou jardim.
Momentos depois.
Eu sei: neste exato momento em que estás, o que queres é que este tempo termine. Que em dois ou três minutos eu agradeça a tua presença e vamos todos contentes e felizes para casa. Já fomos eficientes.
Já mostramos que sabemos correr. Está bom. Muito obrigada pela vossa presença. Foi maravilhoso estar aqui convosco nesta cidade. Obrigada por terem vindo. Um até já e um resto de bom dia.
Cria-se uma espécie de falso fim.
Espera-se que alguém abrande ou desista da corrida.
A performer continua a correr, mostrando que o cansaço terá de ser ultrapassado, e que, por vezes, é o corpo que comanda.
Longo silêncio: cerca de dois ou três minutos.
Respira.
Engole a saliva que acumulas dentro da boca.
Eu sei: é um engolir pesado. Sentes o ramo a entalar-te a garganta, os frutos a rebentar dentro do teu estômago, as raízes que se expandem grossas até aos dedos frios dos pés. Como se engolisses uma árvore inteira. Nunca vivemos sozinhos. No fim de tudo há sempre as plantas, um tomateiro, uma aboboreira que dá rama detestável. Uma árvore que pesa, mas que te faz companhia.
Pensa assim: oxigénio nunca te faltará, nem seiva ou celulose. E talvez isso seja suficiente para saberes respirar. Chegas à pré-reforma e sabes que, presumivelmente, pelo menos oxigénio terás para respirar. Já não tens certezas de mais nada. Recebes 318 euros de pensão, tens uma carrinha velha, faltam- te três dentes, mas enquanto puderes respirar és um privilegiado.
30 anos depois e agora, de repente, tens tempo. Não sabes o que fazer. Pegas numa serra ou machado, pões-te a trabalhar a tua árvore. Até porque uma árvore não é só uma árvore. Sabias? Podes ter portas, bancos, estantes, prateleiras envernizadas dentro de ti ou como facilmente te surge uma cómoda dentro do teu estômago. Agora tens um móvel pesado no teu estômago que te entrava a respiração, que cresceu sem dares por isso. Uma árvore cortada, transformada, entalhada a apodrecer. A ganhar bicho.
Viver com uma árvore dentro de ti que te faz sentir atulhado até à garganta.
Respira fundo.
Breve respiração.
Pensa nos pinheiros altos com as raízes a saltar do alcatrão, imagina o que é crescer como uma árvore: vertical e horizontalmente. A copa a crescer para cima, as raízes a atravessarem a terra, a estrada, o cimento, a desbravarem a cidade. Saber crescer como uma árvore, isso sim. Saber desbravar cidades inteiras, asselvajar cidades inteiras, perfurá-las de ramos, plantas, ervas, fungos e todos os animais possíveis. Uma cidade cortada a meio sem poder ser cidade.
E nós a fazer parte dessa modesta invasão. Cheguem-se para mais perto. Deem as mãos. Podem dar as mãos? Não tenham medo. Dois a dois, três a três, não importa. Só não parem. Invadam o espaço do outro. Somos todos parentes. Vamos ser um enorme bando migratório. Animais de duas patas a rasgar por esta cidade fora, pela estrada fora, pelo céu fora.
A atravessar linhas imaginárias e hemisférios. Não há nada que nos trave. Os mais fracos protegidos pelos mais fortes. Os mais fortes a rodear os mais fracos. Cheguem-se mais para perto! Deem as mãos.
Venham. Inclinem-se uns para os outros.
Para onde vamos? Não sei. Alguém quer decidir?
Invade-se uma estação de comboios ou aeroporto, apeadeiro, paragem de autocarros, um sítio de partidas ou chegadas.
Cria-se a ideia que não se pode parar, que independentemente de tudo a performance não pode parar.
Avança-se quase em linha reta, passando por cima das coisas, entrando em portas de acesso proibido.
Mantém-se a ideia de um grupo compacto, um bando migratório que avança em conjunto.
Não é nada de especial. É pensar onde queremos ir e qual o propósito. Quanto tempo? Uma hora, duas, um dia inteiro, o que quiserem, a maioria decide.
Vamos?!
Quem é que vai à frente? Alguém? Não parem! Vá lá, continuem a avançar juntos. Sim, juntos. Quem decide? Alguém? Tu? Sim, tu. Anda. Vai à frente. Sabes rezar? Se sabes rezar!?
Silêncio.
A oração está nos pés. Não é o santo ou a virgem ou o terço que se carrega nas mãos, é decidir caminhar até chegar um milagre. Como se caminhar trouxesse em si tudo aquilo que esperamos. Como se os problemas se resolvessem com passos, marchas, trotar até ao fim do mundo. Tudo em linha reta até ao fim do mundo e que no fim chegue o milagre. Anda milagre, não desiludas. Corre!
Caminhar religiosamente para chegar a um milagre, como se bastasse isto: ir contra os milagres. Nunca uma oração foi tão simples. Pisar o chão com golpes e golpes repetidos, um pé firme enquanto o outro avança, as solas a martelar a estrada com a força militar de quem vai deitar muros abaixo. A diferença é quase nula entre um e outro. Repara: um milagre não passa de um muro que te cerca todos os dias. Um muro um milagre que te mantém fiel e devoto. Não te desvies, nem hesites. Nunca se para quando se vai à procura de um milagre.
Automaticamente a velocidade da corrida aumenta, como se a sugestão anterior fosse uma alavanca para acelerar o ritmo da corrida.
Eu sei: há uma regra imposta na cidade. As árvores crescem para cima, o cão é para passear, a casa para ficar de pé. Mas olha à tua volta: há sempre uma casa que quer cair. A sustentarem-na um conjunto de andaimes. Aço em todas as diagonais. Ninguém deixa a casa ruir.
Houve um dia em que alguém disse que as casas são para ficar de pé. Obrigas a matéria a ficar de pé, o cimento a ficar de pé, tudo pronto a ser habitado. Nem só de chão se faz uma casa, tem de ser alta, vertical, não pode cair e, portanto, há que confinar cimento a uma casa. Fecha-lo ali dentro, castiga-lo, colocas uns andaimes, encerras o cimento àquela forma, espaço, altura. Obrigas a casa a ser uma casa como se não houvesse vontade própria dentro da matéria. Queres domesticá-la, amansá-la, torná-la civilizada. Mas a matéria não é um animal submisso, tem desejo próprio, sabias? Não quer ser aquilo que lhe impões. Quer a cada dia tomar novas formas e devolver-se a outras, degradar-se para se transformar, desorganizar-se. Não quer trelas, cercas ou pontos finais. Quer ser casa, e essa casa quer também ser pó, canteiro, ruína, carro.
Silêncio.
Se perguntasses a quem passa de que é feita uma casa ninguém te saberia responder. Vives e morres dentro duma, mas desconheces de que é feita.
Olha aqui! Vês? Dentro deste cimento areia e água, dentro do tijolo argila, no alcatrão sobras de petróleo. Há sempre mais do que uma casa dentro de uma casa. Uma natureza inteira dentro de cada pequena coisa. Dentro de mim, de ti e desta cidade. Tudo dependente do mesmo.
Uma cidade inteira dependente deste alcatrão que também tu fumas dia sim, dia não. Dois corpos dependentes da mesma substância tóxica. Tu a inspirar alcatrão e, ao mesmo tempo, a deslizar sobre ele.
Alcatrão pela cidade fora e por ti adentro. Alcatrão a isolar-te os canos e órgãos, alcatrão no interior dos teus orifícios e rombos, alcatrão como asfaltos inteiros dentro dos teus pulmões.
Escuta!
O ritmo da corrida baixa.
Há um longo silêncio.
Espera-se que silêncio permita prestar mais atenção à própria respiração, o que possibilita uma espécie de escuta interna.
Segundos depois.
Ouves?
A respiração? Parece mais grossa. Uma mancha de ar que me sai e volta ao peito, como se o ar tivesse ganho volume. O diafragma contrai-se e os pulmões alargam a cada inspiração, mas o corpo não cessa.
Uma perna à frente da outra. Os cotovelos presos às costelas. A cabeça fixa em frente. É-me difícil olhar à volta. O cansaço já nem me deixa olhar em volta, só em frente.
E há qualquer coisa dentro da minha cabeça que me faz querer parar. Uma vontade mínima que começa dentro do cérebro e que se vai espalhando para o resto dos órgãos. A decisão é minha de parar ou de continuar. Parar ou continuar?
Avançar, abrir espaço, para dentro.
Escavar, escavar cada vez mais fundo, uma toupeira que esburaca. Em média três ou quatro metros que ela consegue escavar por hora. Um sistema de galeria inteiro dentro do meu cérebro e uma toupeira que esburaca massa encefálica. Túneis enormes onde me perco, não há rede, nenhum GPS que funcione naquela profundidade. À medida que esburaca, a toupeira vai comendo as minhas raízes.
Não me importa.
Haveria quem armadilhasse o próprio cérebro ou tomasse óleo de rícino para afastar a maldita toupeira, mas eu gosto de toupeiras e buracos.
Conheço-os demasiado bem. É lá que me escondo de todas as coisas das quais tenho medo. Evito um número excessivo de movimentos, fecho-me num pequeno canto do meu bunker. Vivo na imobilidade, sem excesso de atividade ou movimentação. Chama-se economia de gestos.
Sabes? Conheces?
O excesso desgasta a Natureza, perturba a cidade. E acarreta outros males para ti mesmo: dores, dúvidas, impostos para pagar…
É preciso economizar pelo movimento. Pensar em exercer o mínimo de gestos possível no teu dia a dia. Ser um enorme corpo simulacro, repetindo os mesmos dias, palavras, gestos, ânsias, as mesmas manhãs e o mesmo café solúvel que não presta, abandono, alucinações, os mesmos dedos que lavo todos os dias, sempre o mesmo tempo e a mesma repetição e manhãs, ânsias, as mesmas palavras que não prestam, abandono, tempo e os dedos, alucinações que lavam, ânsias e ânsias e ânsias e os mesmos gestos solúveis, o mesmo café de todos os dias, simulacros, sempre o mesmo “não presta”, o abandono de todos, a ânsia nos gestos, e alucinações, nações, ações, o tempo solúvel, café solúvel, repetição, sempre o mesmo corpo que lavo todos os dias.
O grupo reconhece que deu a volta ao quarteirão, o que fez com que a rua em que passaram há uns minutos atrás seja a mesma pela qual correm agora.
Há muito de solitário dentro de tudo isto. Sinais luminosos gigantes que me ofuscam os olhos não me fazem sentir acompanhada. O ruído ensurdecedor dos pneus no asfalto não me faz sentir acompanhada. As
luzes vermelhas das ambulâncias não me fazem sentir acompanhada.
Posso passar por uma multidão inteira
ou mesmo pedras,
carris,
tijolos,
comboios,
outdoors de 9 metros por 3,
estações de metro rosa que substituem jardins,
lojas de sardinhas enlatadas,
a senhora do supermercado,
o lixo no passeio,
uma vassoura que cai de um terceiro andar,
um cão que se masturba,
tudo isto a verter, e eu continuo sozinha.
E sabem que mais?
Deixem-me sozinha. Deixem-me. Só não me privem da minha velocidade. A velocidade não. A velocidade é a única forma de vigiar o meu corpo. Aqui, onde estou, meço a íntima variação do meu corpo em função do
tempo. É a isto que chamo vigiar o corpo: saber medir a minha posição, o lugar em que estou, o tempo que o meu pé esquerdo demora a voltar ao chão depois de sair dele, a rapidez do meu sangue a correr nas veias, a frequência com que pisco os olhos, com que abro a boca para respirar, quantos passos conto daqui ali, a quantidade de saliva que produzo em cinco minutos, movimento peristáltico, saída, deslocação.
Pequeno silêncio.
O ritmo da corrida continua.
E tu? A que velocidade vais? Qual é a tua velocidade?
Às vezes quanto mais rápido mais fundo. Quanto mais veloz mais próximo do fim.
A corrida sai do espaço rua e invade um edifício qualquer.
Entra no interior de um supermercado ou mesmo uma qualquer casa privada.
Pretende-se que haja um momento de confronto, conduzindo o grupo por espaços que à partida não são destinados à corrida ou ao olhar público.
Intensifica-se a ideia de um grupo fantasma que avança por qualquer sítio sem ser notado, como se a corrida permitisse ver, mas não ser visto.
Um furo do tamanho da cabeça de uma agulha dentro do meu cérebro. Depois escavar, alargar esse buraco mínimo, escavar bem fundo até se tornar um buraco do meu tamanho.
Não é mais do que invadir a minha natureza.
Avançar por ela dentro.
Desmatar o meu próprio território.
Agora sim: vivo em segurança debaixo do chão. O frio do cimento roeu-me os ossos, mas não tenho medos ou ansiedades exageradas porque agora não há nada que possa vir contra mim: nem bombas, guerras ou epidemias. Sou um corpo estacionário.
Sem grandes progressos ou recuos.
Tento escavar ainda mais até encontrar água.
Viver com água pelos pés, pelos joelhos, até ao peito.
Massas de água ao redor de todo o meu corpo.
Até me transformar em restos orgânicos a conviver efusivamente com o plâncton.
Respiração.
Não é mais do que substituir uma velocidade por outra. Há ações que precisamos de ver de perto para as podermos distinguir. Escavar e correr são ações que se confundem de longe, parecem preencher o mesmo espaço, podem alcançar até a mesma velocidade.
Escavar, escavar, escavar, escavar, cavar, cavar, cavar, correr, correr, escorrer.
A velocidade faz-nos isso. Altera a perceção das coisas, baralha tudo. De um dia para o outro passamos, inclusive, a distinguir as pessoas e a agrupá-las consoante a sua velocidade. Como agora: não há nada que nos una mais, neste preciso momento, do que a velocidade que partilhamos. Não sabes ao certo a ação que estás a cumprir, quem é a pessoa que corre ao teu lado, o nome dela. Mas de alguma forma estamos todos numa relação conjunta e compassada.
Partilhamos a mesma rapidez, o mesmo deslocamento. Não me recordo de nada mais íntimo do que partilhar a mesma velocidade com alguém.
É essa intimidade que vives agora: provavelmente uma intimidade igual ou superior àquela que partilhas com o teu pai ou mãe. Mas não te preocupes com isso. Agora estás aqui: pertences a esta enorme mancha a escorrer pela cidade fora. É assim que te distingues do resto do mundo.
Olha ali! Já viste? Nem parecem iguais a nós! São de outra espécie, fora do nosso mundo, a executar ações ingénuas. Não sabem quem somos, nem nos vêm. Já reparaste? Estão fora da nossa velocidade.
Não percebem aquilo que fazemos nem o porquê de o fazermos. Não entendem sequer a ideia de velocidade, que ela pode inclusive alterar aquilo que tu és, a tua perceção das coisas e de ti mesmo, a tua direção, o teu sentido, o teu tamanho.
O percurso continua pela cidade.
Espera-se que este incluía cada vez mais áreas cinzentas e ruidosas.
É tudo uma questão de cartografia.
Tens dois mapas. O mapa do teu corpo e o mapa da tua cidade. E lado a lado um é maior que o outro. O mapa do teu corpo é excessivamente maior, como se alguém tivesse medido errado, feito as coisas à pressa. Perguntas como é que um corpo pode ser maior que uma cidade. Ninguém te sabe responder.
Comparas os mapas outra vez, olhas para cada um deles. O teu corpo ocupa todo o centro da cidade e é ele que empurra lentamente tudo o resto para fora. Não cabe mais nada lá dentro. Nem uma pequena mosca. De repente uma cidade inteira a abarrotar com os teus órgãos, fluídos e membros. De repente tudo a ser empurrado para fora. Tudo a ser despejado. E tu, no centro do mapa, a assistires à saída de tudo aquilo que conheces: fungos, bactérias, plantas. Todos os nomes de animais coletivos de que te lembras a desaparecerem, a virarem-te as costas. Da sua passagem só as fezes das aves. Não sobra mais nada.
No fundo resume-se a isto: erros de cartografia podem despoletar tragédias.
E neste preciso momento em que estás, atravessas a cidade. Medes o teu corpo em função dela. Sabes que debaixo deste chão está uma natureza inteira, que acima daquele edifício outra, atrás desta casa também, no entre construímos metal, máquinas, túneis, chaminés industriais. Não sobrou mais nada vivo.
Não é mais do que natureza a matar natureza. Nunca soubemos ser civilizados. Lanças para dentro de um quadrado um exemplar de cada espécie. Não se espera mais nada dos animais: devoram-se uns aos outros. Não percebem que um quadrado é só uma imagem sem tamanho, que se alarga e reduz à medida do tempo. Que todas as imagens não passam de representações modificáveis, de que há uma energia elástica que salva tudo.
Dilatação!
O progresso sempre foi perverso. O lucro quadrado.
Depois de algum tempo já não resta nada.
Pequeno silêncio.
Os órgãos deixam de funcionar,
os membros de agir,
a memória de guardar.
Até o corpo se vai deteriorando. Tudo acaba por se cansar com o tempo.
O ritmo da corrida desce consideravelmente ao ponto de o grupo passar da corrida para uma caminhada ativa.
Deixa-se o cansaço chegar ao corpo.
Note-se que a corrida vai já perto dos 35 minutos.
Contudo, apesar do ritmo lento, a performance continua.
Os corpos revelam os efeitos da corrida: respirações altas, corações a bombear, o suor colado à pele.
Um corpo coletivo próximo da exaustão.
Um corpo que se vai demolindo. Peça por peça.
Como uma perna que foi amputada, mas onde continuas a sentir dor. Uma perna gangrenada que tiveram de te cortar. Tecidos mortos, formigueiro, alteração da cor da pele, não há mais nada a fazer. Cortam-te a perna e continua a impressão no membro fantasma.
Será assim com o resto também.
Órgão
por
órgão.
Até o corpo se reduzir a uma minúscula peça.
Há sempre órgãos mais úteis que outros, não é? Há sempre mortes que custam menos.
O cérebro no topo da hierarquia, o pâncreas no fim.
Quinze centímetros de um órgão no fim da tabela anatómica. Há sempre alguma parte que fica para trás. Pâncreas, vesícula, reto, baço, intestino grosso, glândulas lacrimais. Tudo lá no fosso. Cá em cima cérebro, seguido de coração, depois pele, estômago, pulmões. Há um sistema de poder em todas as partes do mundo. Uns acima dos outros. Mortes que valem menos que outras.
Silêncio.
Fecho os olhos durante dois ou três segundos. Abdico da visão como a primeira função a abater. Estou farta de coisas visíveis. Cansada sempre do mesmo, sempre a mesma repetição, a mesma televisão todos os dias. Fecho os olhos. Três ou quatro segundos é muito rápido. Quase nem dás por isso. Confio no meu faro. Fecho os olhos e continuo a ver tudo a vir contra mim.
A luz triste dos candeeiros a atravessar-me
O vermelho da ambulância a atravessar-me
O cheiro dos cães a atravessar-me
Energia elétrica
A rebelião das pombas a atravessar-me
Estufas e mais estufas
Plantações de ferro e pedra
Húmus, pus e peixes mortos
Ar, terra e o sexo das plantas
Rostos e mais rostos que não vejo
O queimado no fundo da panela que não sai
Cieiro
Corais mortos
E o cio dos gatos
Banhos de água benta
Amendoeiras em flor
Herbário de plantas medicinais,
Frases descartáveis
Desaparecimentos
Já disse corais mortos?
Lítio, plástico e chumbo
Fumo condensado
Tudo a atravessar-me. Tudo a vir contra mim.
Como se às vezes fosse preciso isso mesmo. Esquecermo-nos das coisas visíveis.
Aqui não vos vejo. Mudo a posição das coisas.
A minha mecânica é microscópica.
Fecho os olhos para saber onde estou. A vista, às vezes, não vale nada.
Pequeno silêncio.
O som da voz que narra começa lenta e progressivamente a baixar de volume, como que efabulando uma corrida para a perda de sentido.
A caminhada continua.
Espera-se que o olhar do espetador | participante continue atento ao interior do seu corpo e ao seu corpo no interior da cidade.
Sei que ainda respiro, sobrevivi a todas estas imagens, ao tempo, a todas as bactérias que inspirei, hologramas, letargias, agressão. Mas não saio do
mesmo lugar. Há gestos que não nos levam a lado nenhum. Continuo no mesmo sítio, como uma passadeira elétrica que me faz crer em mentiras. A
seguir a isto há o quê?
Não te enganes.
Um martelo pneumático a romper com o asfalto, pedra, concreto. Perfurar massa encefálica. A testa a tremer por todo o lado, o martelo a furar, a entrar fundo dentro do cérebro. A broca a abrir caminho entre as pedras, a ganhar espaço por todos os lados, a chegar ao cerebelo.
Martelo pneumático, picareta, ponteiro: podes escolher a tua própria máquina. Quem sou eu para decidir sobre maquinarias sofisticadas de perfurar carne.
Qualquer coisa serve. Tragam qualquer coisa. Um buraco no meio da testa onde ninguém me encontre.
Podem tocar à campainha, gritar, chamar por mim.
Podem fazer uma revolução inteira lá fora, nem vou dar por isso.
Mas não é uma prisão. Não confundas um bunker com uma prisão. Massa encefálica não é a mesma coisa que cimento nem paredes verticais, não há
horário estabelecido de despertar, não me limito a uns minúsculos metros quadrados de uma solitária.
Dentro do meu cérebro posso ir aonde quiser. Aqui nada, absolutamente nada, ocupa espaço.
A caminhada continua, mas desta vez é imposto o silêncio.
Há uma espécie de exigência para que o grupo de mantenha unido: em bando.
Gradualmente, sem nenhuma indicação de fim, o grupo é direcionado para junto do teatro onde o percurso tinha começado minutos atrás.
A performance termina.